domingo, 20 de outubro de 2013

Casa Espírita & Senzala


Cento e vinte e cinco anos depois da abolição da escravatura negra seria teoricamente perda de tempo examinar resquícios daquela realidade desigual na sociedade brasileira. Não é. Ainda há focos de discriminação em muitas áreas, mas a gradual ascensão social tem até colocado os negros em níveis de decisão nas principais instituições nacionais como, por exemplo, a presidência da Suprema Corte da justiça brasileira com a eleição do Ministro Joaquim Barbosa. Numa área, em especial, parece prescindir da necessidade da adoção de uma espécie de segunda abolição da condição negra: os ambientes espirituais das casas espíritas.
O ambiente doutrinário das casas espíritas, de maneira geral, não abriga a presença dos “espíritos dos negros” nas suas práticas mediúnicas, há, em muitos casos, uma discriminação velada associando-os a atraso intelectual e moral, quando não à qualidade de entidades obsessoras. Duas razões básicas podem ser atribuídas a este comportamento equivocado: preconceito cultural e ignorância doutrinária.
PROMOVENDO UMA MUDANÇA CULTURAL
Etnocentrismo é o conceito utilizado para definir o comportamento da pessoa que vê o mundo através da sua cultura e tende a considerar o seu modo de vida como o mais correto e natural. Enxerga a realidade pelas lentes das suas próprias concepções e aquilo que foge ao padrão aceitável na comunidade na qual está inserida tende a discriminar o comportamento. Este fenômeno cultural é transferido para os ambientes espíritas à medida que se caracterizou como inferior as matrizes de manifestação espiritual dos negros do ponto de vista evolutivo.
Herdou-se, na prática, a concepção de uma elite que considera cultura superior aquela que viesse de “povos culturalmente mais desenvolvidos”, como a Europa, por exemplo. A ideia de elite cultural ocidental foi transplantada também para as sessões mediúnicas das casas espíritas, onde espíritos de intelectuais, profissionais liberais e padres, todos brancos, representariam uma condição espiritual igualmente superior. Os negros, ex-escravos, são considerados os selvagens, com práticas espirituais associadas à feitiçaria, necessitados assim da “catequização”, ou melhor, da doutrinação espírita.
Onde está a raiz deste desencontro cultural? Há uma data marcada que pode simbolizar o rompimento da possível convivência espiritual negra nos ambientes espíritas: 15 de novembro de 1908 - data de criação da Umbanda.
Zélio de Moraes, um jovem de 17 anos, estava psiquicamente perturbado. Era afetado por mudança de personalidade repentina quando através dele outras pessoas (mortas) se expressavam. Levado a então Federação Espírita de Niterói por seu pai, de convicção espírita, incorporou, na sessão mediúnica, uma entidade que se denominava Caboclo das Sete Encruzilhadas. Sua postura foi rechaçada pelos presentes, apesar de ser reconhecido, pela vidência mediúnica, na figura de um padre. Depois do episódio, no dia seguinte, a entidade funda a Umbanda, espaço onde os espíritos dos pretos-velhos africanos, que haviam sido escravos, e os índios, além de espíritos de qualquer cor, raça, credo ou posição social, poderiam se apresentar para a convivência espiritual partilhada.
Como seria o Espiritismo no Brasil se tivesse ocorrido uma convergência de interesses entre os representantes da doutrina espírita da época e as identidades espirituais da matriz cultural local?
Este questionamento se torna pertinente porque a filosofia espírita, recém-introduzida no País no século 20, trazia, entre seus protagonistas espirituais, personalidades de identidade cristã (João Evangelista, Erasto, Paulo etc.), de identidade católica (Fénelon, Santo Agostinho, São Luis etc.) e de identidade europeia (Sansão, Pascal etc.). Nada mais natural, afinal, esta era a matriz de cultura espiritual que Allan Kardec encontrou, já que foi lá, especialmente na França, a sua origem. O que não era razoável conceber – e foi o que predominou – é que esta matriz espiritual fosse considerada superior à matriz espiritual brasileira formada por negros e índios – e também os portugueses. Neste embate, infelizmente, preponderou o viés cultural. Ontem e ainda hoje.
SUPERANDO A IGNORÂNCIA DOUTRINÁRIA
É compreensível, portanto, que o ambiente cultural do País tenha influenciado o comportamento das casas espíritas, mas não se justifica, porém, que ela tenha se mantido, e o que é pior, que este equívoco doutrinário permaneça atualmente.
Em “O Livro dos Espíritos”, Allan Kardec indaga aos espíritos sistematizadores da filosofia espírita se “um homem que pertence a uma raça civilizada poderia, por expiação, reencarnar em uma raça selvagem?”. Eles asseveraram que isso é possível e que ocorre em função do gênero de expiação. Adiantam o que veio a acontecer com frequência no Brasil fruto do nosso passado escravocrata, esclarecendo que “um senhor que tenha sido cruel com seus escravos poderá tornar-se escravo por sua vez e sofrer os maus-tratos que fez os outros suportar.” Além desta condição expiatória, a reencarnação pode se dar como uma missão com a finalidade de ajudar o progresso.
Fica evidente, portanto, que os espíritos aproveitam as diversas situações para promover a evolução, em qualquer raça, em qualquer situação, em qualquer época, sendo um contrassenso generalizar como inferior tudo que venha da chamada raça selvagem.
No livro “A Gênese”, Allan Kardec esclarece sobre outro aspecto igualmente interessante, a mudança da aparência astral. É pelo pensamento e pela vontade que os espíritos podem modificar, segundo sua intenção, a sua aparência espiritual. Textualmente, chega a afirmar que se um espírito “foi negro (numa encarnação) e branco na outra, apresentar-se-á como branco ou negro, conforme a encarnação a que se refira a sua evocação e à que se transporte o seu pensamento.”
Às vezes, mesmo que um espírito não tenha tido uma encarnação na pele negra, por este mecanismo de mudança de aparência astral, ele, se quiser, poderia se apresentar como um negro para atingir um objetivo específico, como é o caso dos chamados pais-velhos.
O termo Pai-velho talvez seja o mais apropriado para se referir aos espíritos que povoam as mesas mediúnicas espíritas – quando permitem que se apresentem.  Os pais-velhos geralmente são espíritos iniciados de antigas civilizações e exatamente por causa disso são respeitados pelos espíritos das sombras pelo seu domínio do conhecimento do magnetismo e do ectoplasma, e pela sua capacidade de atuar em desmanche de magia negra. Apresentam-se nesta forma astral para lembrar no arcabouço atávico da população a figura de alguém humilde, sábio, simples e experiente. Mais. Esta aparência serve para combater o preconceito, quebrar barreiras raciais, religiosas, espirituais e sociais. De acordo com suas especializações espirituais e sua descendência de raiz cultural recebem sobrenomes diferenciados como do Congo, de Aruanda, de Angola, das Matas, das Almas etc.
FRATERNIDADE E ALTERIDADE NAS RELAÇÕES
Para se vencer o preconceito cultural e a ignorância doutrinária nos meios espíritas é imprescindível a vivência de duas condutas: a fraternidade e a alteridade.
Na dimensão dos espíritos, apesar de se agruparem por suas afinidades e identidades espirituais, o que prevalece é o compromisso no bem. Neste sentido, as divisões religiosas, raciais ou outras quaisquer, não têm a menor importância. Importa para eles é estar juntos para a prática do amor, numa relação fraterna. Espíritos ligados aos movimentos umbandistas, evangélicos, espíritas, católicos etc. dividem sua atuação em igrejas, templos, casas espíritas e tendas para ajudar ao próximo. Tudo pelo Cristo e pela urgência atual do período de transição planetária que se atravessa.
O filósofo espírita José Herculano Pires, em “Ciência Espírita”, defende que “Negros e índios têm o mesmo direito de colaborar nesta hora de transição, como brancos e amarelos. Mas sem a orientação segura do pensamento doutrinário, nas bases sólidas, lógicas e altamente culturais de Kardec, estaremos ameaçados de cair nos barrancos do caminho pelas mãos pretensiosas de cegos condutores de cegos.”
No caminho das relações alteritárias, o da convivência harmoniosa e construtiva entre os diferentes, oportuna é a observação do Pai João de Aruanda, no livro “Negro”, de Robson Pinheiro, principalmente para aqueles que temem uma suposta confusão entre o Espiritismo e a Umbanda, uma vez que é na Umbanda onde é mais comum a manifestação dos “pretos e pretas”: “Em matéria de espiritualismo, Umbanda ou Espiritismo, o que mais vale é a bandeira do amor e da caridade, sem preconceitos. União sem fusão, distinção sem separação.”
Em “Casa Grande & Senzala”, o sociólogo Gilberto Freyre tenta desmistificar a ideia de que no Brasil se teria uma raça inferior em função da miscigenação que aqui foi estabelecida, ao contrário, atribui a este fenômeno um ponto positivo na formação cultural brasileira, que é a sua singularidade. A transposição deste raciocínio é fundamental para o ambiente espírita à medida que resgata esta identidade espiritual vinda da África e que ganhou contornos próprios nesta terra que se propõe a ser o coração do mundo e a pátria do evangelho.
A edificação da referência da práxis evangélica para a humanidade somente ocorrerá, no entanto, se criarmos um ambiente de convivência focada na inclusão, no respeito às diferenças, na prática real do amor. E amor, definitivamente, não se conjuga com preconceitos.
Saravá!
Carlos Pereira
* Artigo publicado recentemente na Revista Cristã de Espiritismo. 

Psicofonia consciente, por André Luiz

"Nesse ínterim, os condutores, obedecendo às determinações de Clementino, localizaram o sofredor ao lado de Dona Eugênia. 
O mentor da casa aproximou-se dela e aplicou-lhe forças magnéticas sobre o córtex cerebral, depois de arrojar vários feixes de raios luminosos sobre extensa região da glote. 

Notamos que Eugênia-alma afastou-se do corpo, mantendo-se junto dele, a distância de alguns centímetros, enquanto que, amparado pelos amigos que o assistiam, o visitante sentava-se rente, inclinando-se sobre o equipamento mediúnico ao qual se justapunha, à maneira de alguém a debruçar-se numa janela. 

Ante o quadro, recordei as operações do mundo vegetal, em que uma planta se desenvolve à custa de outra, e compreendi que aquela associação poderia ser comparada a sutil processo de enxertia neuropsíquica. Suspiros de alívio desprenderam-se do tórax mediúnico que, por instantes, se mostrara algo agitado. Observei que leves fios brilhantes ligavam a fronte de Eugênia, desligada do veículo físico, ao cérebro da entidade comunicante. 

Porque eu lhe dirigisse um olhar de interrogação e estranheza, Áulus explicou, prestimoso: 
– É o fenômeno da psicofonia consciente ou trabalho dos médiuns falantes. Embora senhoreando as forças de Eugênia, o hós- pede enfermo do nosso plano permanece controlado por ela, a quem se imana pela corrente nervosa, através da qual estará nossa irmã informada de todas as palavras que ele mentalize e pretenda dizer. Efetivamente apossa-se ele temporariamente do órgão vocal de nossa amiga, apropriando-se de seu mundo sensório, conseguindo enxergar, ouvir e raciocinar com algum equilíbrio, por intermédio das energias dela, mas Eugênia comanda, firme, as rédeas da própria vontade, agindo qual se fosse enfermeira concordando com os caprichos de um doente, no objetivo de auxiliá- lo. Esse capricho, porém, deve ser limitado, porque, consciente de todas as intenções do companheiro infortunado a quem empresta o seu carro físico, nossa amiga reserva-se o direito de corrigi-lo em qualquer inconveniência. Pela corrente nervosa, conhecer-lhe-á as palavras na formação, apreciando-as previamente, de vez que os impulsos mentais dele lhe percutem sobre o pensamento sarnento como verdadeiras marteladas. Pode, assim, frustrar-lhe qualquer abuso, fiscalizando-lhe os propósitos e expressões, porque se trata de uma entidade que lhe é inferior, pela perturbação e pelo sofrimento em que se encontra, e a cujo nível não deve arremessar-se, se quiser ser-lhe útil, O Espírito em turvação é um alienado mental, requisitando auxilio. Nas sessões de caridade, qual a que presenciamos, o primeiro socorrista é o médium que o recebe, mas, se esse socorrista cai no padrão vibratório do necessitado que lhe roga serviço, há pouca esperança no amparo eficiente. O médium, pois, quando integrado nas responsabilidades que esposa, tem o dever de colaborar na preservação da ordem e da respeitabilidade na obra de assistência aos desencarnados, permitindo-lhes a livre manifestação apenas até o ponto em que essa manifestação não colida com a harmonia necessária ao conjunto e com a dignidade imprescindível ao recinto. 

– Então – alegou Hilário –, nesses trabalhos, o médium nunca se mantém a longa distância do corpo... 

– Sim, sempre que o esforço se refira a entidades em desajuste, o medianeiro não deve ausentar-se demasiado. Com um demente em casa, o afastamento é perigoso, mas se nosso lar está custodiado por amigos cônscios de si, podemos excursionar até muito longe, porquanto o nosso domicílio demorar-se-á guardado com segurança. No concurso aos irmãos desequilibrados, nossa presença é imperativo dos mais lógicos."

Livro: Nos Domínios da Mediunidade, págs. 49 e 50
pelo Espírito André Luiz / Francisco C. Xavier